quinta-feira, 2 de outubro de 2008

crítica ao filme "ensaio sobre a cegueira"


em "ensaio sobre a cegueira", fernando meirelles mostra como poderia a sociedade, tida como civilizada, desmoronar-se, caso ficasse exposta a uma eventual epidemia de cegueira branca, em decorrência da qual começassem a lhe faltar as condições de conforto e de segurança, a que está normalmente habituada.

com base no romance-parábola homônimo de José Saramago, o filme, que tem roteiro de don mckellar, que também interpreta o ladrão, por não dar nomes às personagens, por incluir três narradores e por usar, em demasia, imagens obscurecidas ou desfocadas, dá noção de que teria sido feito com o nada apreciável propósito de apenas confundir o bom burguês, razão pela qual, como acredito, não foi, nem poderia ter sido, bem recebido na sessão de abertura do último festival de cannes.

é evidente que não cabe comparação do filme com a obra literária. primeiro, porque as linguagens são diferentes. e, segundo, porque saramago - grande prosador e clássico estilista, mas incerto como filósofo - se manifestou de acordo com a adaptação, difícil, por sinal, de ser realizada. essa atira para todos os lados, em termos ficcionais, a fim de atingir um certo alvo, isto é, sugerir sentido para a metafórica cegueira branca, leitosa, que contamina a sociedade, como se fora uma peste.

a cegueira seria, metaforicamente, em primeiro lugar, a incapacidade de as pessoas atentarem para o que estão vendo à sua volta, ou seja, de enxergarem, mas não repararem como, por exemplo, no absurdo teatro de Ionesco, o avanço do estado totalitário, que cerceia, como se fora com cerca de arame farpado, a liberdade individual: seria aquele cego que não quer ver, segundo observa uma das mais revoltadas personagens, um contador, que logo é morto.

a cegueira seria, numa segunda hipótese, a falta de liderança: se um cego dirige outro cego, acabarão ambos por cair no abismo, retomando o sentido da famosa parábola de origem bíblica. mas, no caso, entre os cegos, perdidos, confusos, postos pelo Estado, em quarentena, num albergue imundo com o objetivo de manter sob controle a epidemia, há uma mulher (juliane moore) que enxerga e que repara.

ela é esposa de um oftalmologista (mark ruffalo) e possivelmente a personagem menos convincente da história no seu afã de pretender organizar, na situação extrema - a da cegueira branca - uma coletividade em pânico. como líder, entretanto, a mulher avança sob o aspecto puramente individual de vigiar e de cuidar do marido, mesmo depois de vê-lo numa cena amorosa com a garota de óculos escuros (alice braga), a cega mais jovem e bonita da corporação de quarentena.

a última hipótese, inacreditável, seria a falta de fé da humanidade... seria? ora, pois, os cegos, depois de quase se devorarem uns aos outros, mesmo num bacanal (vide estupro coletivo), depois de botarem abaixo os conceitos de moral e de dignidade humana para enfrentar a ala do mal, comandada por um indivíduo sequioso por sexo, "rei da ala 3" (gael garcía bernal), em troca de comida – uma alegoria até certo ponto justificada para o vale-tudo da situação atual brasileira - conseguem, finalmente, a liberdade.

ao atingirem as desoladas e sujas ruas e avenidas de uma cidade não identificada deste mundo globalizado, os cegos, sempre liderados pela mulher do oftalmologista, passam por uma igreja, onde ouvem uma pregação sobre a vida de São Paulo, que se teria livrado da cegueira – não da branca, que é nova, criada por saramago - depois de sua conversão ao cristianismo.

em seguida os cegos voltam às ruas e se deixam banhar por forte chuva que, vinda dos céus, os purifica, num ritual próprio do antigo testamento. e assim, depois da expiação dos pecados e da recuperação da fé perdida, cada um deles vai, aos poucos, se libertando da cegueira branca e retomando a visão.

os cegos são logo conduzidos para o apartamento do oftalmologista e lá, em contato com o aparato doméstico, se sentem mais seguros, fazendo planos para o futuro, já reunidos ao homem com venda preta nos olhos (danny glover), que se revela também como um dos narradores. mas a mulher do médico, líder da horda, resta, na janela, um tanto quanto frustrada, desolada, em relação ao que vira durante o período da quarentena.

apesar dos desacertos de argumento e de roteiro, fernando meirelles dá seu show de direção nos vinte minutos iniciais do filme, quando, ajudado pela fotografia, de pinceladas brancas sobre a tela, causa impacto na platéia pela maneira eficaz como compõe planos e faz enquadramentos das personagens. depois que a dubiedade de linguagem dele se esgota e a rotina do claustrofóbico isolamento se impõe, a narrativa perde força, brilho, e o ritmo do filme cai violentamente.

são os atores - principalmente juliane moore (excelente, como sempre, na interpretação da mulher do médico) - os que seguram realmente a peteca, melhor dizendo, o interesse do espectador pelo ensaio até o final dos 120 minutos de projeção. de fato, moore cria uma personagem que transcende o argumento e as indicações do roteiro, quase no mesmo tom da que interpretara em filhos da esperança, de alfonso cuarón. assim, quando se apagar da memória do espectador o blá-blá-blá da cegueira branca, a personagem de juliane moore continuará para sempre lembrada. para sempre.

ensaio sobre a cegueira
blindness
brasil/canadá/japão/ 2008
duração – 120 minutos
direção – fernando meirelles

elenco – mark ruffalo, juliane moore, yosuka iseya, yoshino kimura, alice braga, don mckellar , danny glover, gael garcía berna.

1 comentários:

Anônimo disse...

tô super curiosa pra ver esse filme, até porque sempre quis ler o livro e nunca comprei, mas tudo que eu leio e ouço falar sobre ele me dá uma idéia de tentativa fracassada de fazer um filme inteligente (o que aconteceu com o babel do iñárritu, na minha opinião). acho que vou assistir na segunda e formar minha própria opinião...



ah... apareci aqui sem convite e já fui comentando na cara de pau, não me leve a mal HAHAHA. miss u :*